A Lei Orgânica da Assistência Social (Lei nº 8.742/93), em seu artigo 20, assegura a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria subsistência nem de tê-la provida por sua família. O texto é claro, direto e revestido de nobreza constitucional: trata-se de uma política pública de amparo aos mais vulneráveis, com fundamento na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88) e nos direitos sociais (art. 6º).
Entretanto, a realidade prática revela um descompasso gritante entre o espírito da lei e sua aplicação pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O que deveria ser uma política de proteção tornou-se uma via dolorosa de comprovação de miséria.
Nos últimos anos, especialmente com o avanço da digitalização dos processos e a intensificação dos cruzamentos de dados entre órgãos públicos, o INSS passou a adotar critérios cada vez mais rígidos para concessão do BPC. O foco desproporcional na renda per capita de até 1/4 do salário mínimo, frequentemente calculada de forma mecânica e insensível, tem excluído do benefício pessoas que, embora em situação real de vulnerabilidade, não conseguem encaixar-se no padrão frio e burocrático exigido.
Um exemplo: uma idosa de 70 anos, com renda familiar ligeiramente superior ao teto legal (por exemplo, um salário mínimo dividido entre três pessoas), é considerada "não pobre o suficiente" pelo INSS, ainda que dependa de terceiros para se alimentar, vestir ou tomar banho. Situações assim são rotineiras nos escritórios de advocacia. A única alternativa? Acionar o Poder Judiciário. E é aqui que reside a crítica mais contundente: a judicialização do BPC é hoje um fenômeno sistêmico que expõe a falência da análise administrativa do INSS em compreender o conceito real de miserabilidade. O Supremo Tribunal Federal já se posicionou no Tema 27 no sentido de que o critério de 1/4 do salário mínimo não pode ser o único fator de aferição da pobreza, devendo o julgador considerar a totalidade da situação social da família. Ainda assim, o INSS persiste em decisões que ignoram precedentes, exigindo a intervenção do Judiciário para garantir o mínimo existencial.
Em tempos de crise econômica e aumento da desigualdade, a postura do Estado deveria ser de acolhimento e flexibilidade interpretativa, e não de blindagem burocrática. O Judiciário, por sua vez, tem cumprido seu papel contramajoritário, concedendo o benefício a quem realmente precisa, com base em relatórios sociais, provas documentais e testemunhais. Mas não deveria ser assim. O acesso ao BPC não pode depender de uma sentença judicial para se tornar realidade.
O problema ultrapassa o campo jurídico: é também ético, social e político. Quando o Estado falha em proteger os mais vulneráveis de forma administrativa, ele empurra os pobres para as filas dos fóruns. E o que é ainda mais grave: favorece a desigualdade, pois nem todos têm acesso à Justiça ou conhecimento dos próprios direitos.
Portanto, é urgente que se reavaliem os critérios técnicos e os parâmetros sociais aplicados pelo INSS à análise do BPC. A vulnerabilidade não se mede apenas com números: ela se vive no silêncio das privações, no prato vazio, na falta de remédio, no isolamento do idoso, no abandono da pessoa com deficiência. E isso, a máquina pública ainda não aprendeu a enxergar.
Enquanto não houver sensibilidade institucional, seguiremos tendo que provar na Justiça o que a vida já grita todos os dias: que há cidadãos brasileiros invisíveis, que não têm o mínimo, mas que têm direito a ele.